O álbum de estreia de Edson da Luz, Azagaia, como assina as suas composições, completa uma década de história em Novembro deste ano. Foi precisamente no dia que se celebra a cidade de Maputo que o jovem disponibilizou o seu “Babalaze” e jamais houve agitação parecida por conta do lançamento de um CD. Foi a pretexto desse trabalho que mereceu a segunda edição dada à sua procura que Azagaia concedeu uma entrevista ao Jornal O País. Não falou apenas do primeiro álbum, o segundo – “Cubaliwa” – e muitos aspectos ligados à sua conturbada carreira vieram ao de cima. Mesmo sem muitas novidades e com poucas aparições em público, o artista assume que continua sendo a voz do povo, o povo que está no poder.
O país: Antes da sua música, o seu pseudónimo não é de se ignorar. Azagaia significa uma lança curta e estreita usada pelos caçadores. O que Azagaia caça?
Azagaia: Azagaia é o nome que escolhi para me identificar na música, porque esta é um factor identitário para os povos e senti que a música que fosse fazer tinha que ter a ver com o meu continente. Por isso que fui buscar o nome Azagaia, uma lança usada pelo Tchaka Zulo. Achei que para o RAP – que é uma música de intervenção – fosse ideal como forma de dizer que vou directo ao ponto.
O país: Muitos lhe conhecem a partir do álbum Babalaze, mas o seu percurso artístico não começa aí. Antes pertenceu ao grupo denominado Dinastia Bantu, com Escudo, outro nome sugestivo. O grupo pelo qual lançou o álbum “Siavuma” desfez-se mas Azagaia continuou a solo. As suas investidas, a partir daí, não foram frágeis?
Azagaia: Não, até certo ponto. Costuma-se dizer que os animais mais frágeis são os mais perigosos. Fiquei mais fragilizado com a saída do Escudo. Ele representava a defesa no grupo. De repente vi-me como uma azagaia sem escudo. E a melhor defesa é o ataque. A partir desse momento tive que ser mais interventivo, mais forte, para poder me defender.
O país: Com o lançamento de “Babalaze”, destacando a música “As mentiras da verdade”, tinha a noção do seu impacto e que poderia dividir opiniões através da sua mensagem contundente e de protesto, sobretudo por ter despertado atenção até de pessoas pouco entendidas de hip-hop?
Azagaia: Quando escrevi o tema “As mentiras da verdade” tinha apenas 22 anos e nessa altura há muita coisa que não sabia. Escrevi-a com base numa conversa que tive com um amigo e com base num e outro jornal que ia lendo, mas nem tinha muito hábito de leitura. E nós, na conversa, fomos dizendo como é interessante que as notícias iam se contradizendo umas com as outras, mas todas fazem parte de um jornal que a gente acredita que nos está a dizer a verdade. Além disto que aparece nos jornais, têm também as estórias que nós ouvimos em casa, nos bairros e os ensinamentos que escutamos dos mais velhos. E fui percebendo que, no fundo, pelos vistos, as verdades têm mentiras por causa dessas contradições. E foi com esse espírito que criei as “As mentiras da verdade”, arrolando todas essas incongruências. E por haver tantas (incongruências) disse – “e se eu dissesse” – como se estivesse a perguntar as pessoas se também notavam as incongruências que notava. Quando fiz a música e, depois, o videoclipe, mostrei a minha mãe. Ela achou a música fantástica, no entanto, pediu que trocasse a letra. Mas fui persistente, porque acreditava na obra que tinha criado. Mas ela não estava tão errada assim, porque é uma música que dividiu opiniões – tive muita gente contra e outras a favor – mas andei seguro no que acreditei e no que a vida me mostrava.
O país: O que lhe fez suportar as perseguições e boicotes daqueles que não gostavam do que dizias na sua música?
Azagaia: Foi um momento de aventura. Tão jovem como era, espantava-me com as interpretações porque eram tão profundas, mais do que aquilo que queria dizer. Mas, como sabe, as palavras têm poder. Por outro lado, no hip-hop já existe essa cultura de intervenção. O hip-hop começou a ser bem visto recentemente, no principio andávamos de calças e camisas largas e era visto como música de marginais. Eu já estava meio acostumado com esse tipo de rótulos. Não só, aquela era a música que tinha para mostrar às pessoas e fazia parte do disco, e era aquilo que ia ser lançado. Não havia como virar para esquerda nem para direita, tinha que ir em frente. E para complementar, foi o momento de grande aprendizado. A música “As mentiras da verdade” mudou a minha vida e a minha visão sobre o país. As pessoas podem pensar que quando escrevi a música sabia de muita coisa. Na realidade, passei a saber de muita coisa depois da música. A música “As mentiras da verdade” fez-me ler mais jornais e livros e conversar com mais gente. Enfim, foi uma semente que lancei ao acaso, mas que fez surgir uma árvore tão frondosa que me dá sombra até hoje.
O país: Depois do estrondo de “As mentiras da verdade”, o que os seus pais disseram?
Azagaia: O meu pai sempre me apoiou. Digamos que ele tem uma veia mais “samoriana”. Ele vem da época da revolução. Fez parte daquela famosa Geração 8 de Março, dos jovens que deixaram de ir à escola para serem professores de outros mais novos. Quando ele ouviu a música, sentiu-se inspirado pelo trabalho que estava a fazer e apoiou-me. Já a minha mãe, temeu pelo meu bem-estar. Como mãe faz todo sentido. Ela não esteve do meu lado, não me apoiou, mas me acarinhou como mãe.
O país: Foi um álbum que fez muito sucesso. Só no primeiro dia vendeu um grande número de cópias e, por isso, teve que preparar a segunda edição. O facto de ter conseguido muita adesão, catapultou os seus ideais e deu-lhe mais força para acreditar naquilo que defendia?
Azagaia: A música “As mentiras da verdade” fez-me amadurecer e fui percebendo quem era realmente. Fui percebendo que sou herdeiro de pessoas que também lutaram pelos seus ideais. E se nós temos um país que podemos chamar nosso é porque houve pessoas que correram seus riscos, jovens como nós. Isso já fazia parte de mim, já respirava revolução dentro de mim através da música. Percebi que a revolução não pára, é contínua. Nós temos de, constantemente, fazer mudanças na nossa vida. A própria natureza está em mutação, por quê nós não podemos fazer o mesmo? Creio que foi esse espírito que me fez perceber que estava no caminho certo, apesar das dificuldades.
O país: Ainda que “As mentiras da verdade” seja o cartão-de-visita, este álbum agrega outras faixas que dão continuidade à temática de contestação e de revolução: “A marcha”, “As verdades”, “As mentiras” e “Eu não paro”. Percebe-se aqui um claro convite aos jovens para despertarem em relação à sua vida e à vida do país. A partir dessas músicas, passou a ser a voz dos injustiçados e a voz do povo?
Azagaia: Continuou sendo a voz do povo, porque continuo fazendo parte do povo. Continuo a assistir coisas a acontecerem há 10 anos, e cada vez mais intensamente e profundamente. As minhas análises continuam até hoje, e estou muito satisfeito por ter entrado por esse caminho. Essas contestações que surgem são fonte de reflexão, mas, ao mesmo tempo, são o combustível para aquilo que a gente quer. Elas inspiram-me como artista e todos dias na minha vida como cidadão. Continuo do meu lado, que é o lado do povo. Embora acredite que todos nós fazemos parte do povo, à medida que vamos conquistando posições na vida facilmente nos esquecemos disso. Mas gosto de sempre fazer as pessoas regressarem. É o que aprendi nesses 10 anos.
Opais: Não achou a música “As mentiras da verdade” o suficiente para fazer a crítica social e política tendo em conta vários assuntos lá arrolados. Precisava, ainda, trazer outros tantos temas com mesmo teor?
Azagaia: A música “As mentiras da verdade” nem sequer é muito poética, é muito directa. Esta música inspirou-me a falar sobre outros aspectos interessantes; fui perceber por que há mentiras da verdade, porque há essas incongruências, porque não se diz a verdade; tive de investigar, olhar para os processos de colonização em África, tive de olhar os herdeiros das revoluções que foram à luta contra esses processos, tive de entender que efeitos aquela colonização teve e tem até hoje na vida dos moçambicanos e dos africanos. Percebemos que existem aspectos como raça, economia, a nossa origem tribal e os nossos sonhos. Tudo isso precisava ser abordado a partir de “As mentiras da verdade”. Não, não foi suficiente, foi só o princípio.
O país: Em 2013, lançou o segundo álbum, denominado “Cubaliwa” - um projecto discográfico mais rico em relação ao primeiro álbum em termos de instrumentalização e que conta com participações de luxo, nacionais e internacionais. Neste CD, não abandona a temática de intervenção social, ainda com outro tipo de análises. É essa identidade que pretende perpetuar?
Azagaia: Se não existisse o “Babalaze”, não existiria “Cubaliwa”. Normalmente, levo as coisas dessa forma. Um acontecimento arrasta o outro e um ensina a sua própria lição. Se respondesse que sim, estaria a ir contra esse princípio. Por ter feito “Cubaliwa”, tem muita coisa que aprendi, muitas pessoas que conheci, que vão me inspirar a fazer o que quero nos próximos tempos.
O país: Sente-se seguro no palco ou no fundo pensa que algo lhe possa acontecer dado à sua mensagem contundente?
Azagaia: Não me sinto com medo porque a música deixa-me vivo e, quando estou em palco, não penso em represálias. A música para mim é algo profundamente espiritual. No momento que a estou a executar encarno uma pessoa que nem sei qual é o nome.
O país: E como se sente na rua?
Azagaia; Dependendo da situação, as vezes posso ficar um pouco constrangido pela maneira de olhar das pessoas. Há pessoas que olham, e sinto que não estou a ser bem visto, mas também tem gente muito carinhosa. Tem um pouco de tudo. A fama em si, é uma coisa que criou um rebuliço na minha vida. Acabei ficando mais famoso do que um dia imaginava.
O país: Que mensagem deixa para aquelas pessoas que se sentem feridas pela sua música?
Azagaia: Um abraço. Não tenho nada contra as pessoas, o meu trabalho é transmitir mensagem. Converso com toda a gente. Já tive a oportunidade de cantar na cara de certas pessoas, que parecia que a minha ideia era ofende-las, mas tinha que cantar porque posso até estar contra uma determinada atitude que acho que a pessoa não fez bem, mas nada me impede de dirigir um sorriso a essa pessoa porque amanhã pode mudar.
Opais: E se fosse para registar numa música a sua opinião sobre a conjuntura actual, a governação de Filipe Nyusi e o comportamento dos ministros e demais dirigentes da coisa pública. O que dirias?
Azagaia: Começaria por perguntar a eles como é que gostariam de ser lembrados, possivelmente não estejam vivos para saber, mas, provavelmente, serão lembrados pelos seus filhos e netos. Perguntaria que herança gostariam de deixar para os seus filhos, para os seus netos e para o seu povo. Moçambique é um país muito rico e tem espaço para todos nós. Hoje em dia, vivemos cenários de corrupção, fundamentalmente, e vimos que há muitos jovens desempregados, e estamos a ser profundamente atacados pela cultura internacional. Eles, como pais, como é que gostariam de olhar para os jovens que vêem aí? Se dissesse que o meu Presidente foi ladrão? Era o que gostariam de saber que ficou a ser dito deles? Ou que o meu Presidente foi realmente um pai? A prostituição que cresce pode não ser das filhas, mas pode ser das amigas das filhas ou dos filhos. Dizem que, às vezes, há fogo à volta da nossa casa, mas ainda não chegou à nossa casa. Nesse caso, temos duas escolhas: ou deixamos o fogo alastrar-se e continuamos na nossa segurança ou acreditamos que aquele fogo vai chegar à nossa casa e nós procuramos ajudar. Em que posição eles querem estar? Acho que só faria perguntas.
O país: Achas que o Presidente da República está a honrar com os seus compromissos?
Azagaia: Acredito que, segundo vejo nos jornais, ele tem cumprido com a sua agenda.
O país: E Azagaia sente-se feliz?
Azagaia: As eleições, em Moçambique, têm sido uma fraude. É um facto. Se não fosse, não haveria tanta confusão em volta delas, não só em Moçambique como em toda África. Não estou satisfeito com as guerras, que surgem fundamentalmente por motivos económicos. Não estou satisfeito com tanta coisa, mas estou contente porque este país ainda é nosso. Um dia não foi. E o que não foi, ou seja, o que aconteceu uma vez um dia pode se repetir. Acho que é tarefa de todos nós evitarmos isso, porque as coisas, quando acontecem, não é de dia para noite, é pouco a pouco. Mais do que simplesmente falar e fazer música acho que é altura de reflexão para cada um de nós.
O país: Para quando o terceiro álbum?
Azagaia: Já comecei a cogitar as ideias. Acredito que em breve, não posso dizer exactamente um dia. Depende muito da inspiração. Vou fazendo outras coisas. Este ano gostaria de fazer alguns eventos com os apoios certos e chamar pessoas que trabalharam comigo no passado para comemorar os 10 anos do álbum “Babalaze”. Acho que é altura de comemorar 10 anos de liberdade de expressão, é uma coisa muito boa para nós como jovens. Este vai ser um ano comemorativo apesar de ter poucos motivos para comemorar, mas vamos reforçar as nossas ideias e as nossas convicções. Antes de nascer a criança existem aquelas dores do parto. Estamos em meio de dores de parto, há muita coisa que está para acontecer neste país, há muita coisa que está para mudar por isso que estamos nessa confusão toda. Vamo-nos agarrar em coisas certas para podermos dar bons passos para o futuro.
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